David Harvey e Zygmunt Bauman |
David
Harvey, autor do livro Condição pós-moderna, é um geógrafo britânico formado na
Universidade de Cambridge. É professor da
City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à
geografia urbana e análise geográfica das dinâmicas do capital. O livro
Condição Pós-moderna, está organizado em quatro partes. A primeira aborda a
passagem da modernidade à pós-modernidade na cultura contemporânea; Na segunda,
Harvey trata a transformação político-econômica do capitalismo do final do
século XX; A terceira considera a experiência do espaço e do tempo e por fim,
na quarta, a condição pós-moderna e suas implicações na cultura e consumo de
massa.
Zygmunt
Bauman, autor do livro Cultura no Mundo Líquido Moderno, foi um sociólogo
polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
Bauman criou o conceito de “liquidez” que se tornou recorrente em várias de
suas obras. O livro Cultura no Mundo Líquido Moderno está estruturado em seis
capítulos. O primeiro mostra apontamentos sobre as peregrinações históricas do
conceito de “cultura”; No segundo, o enfoque é sobre moda, identidade líquida e
utopia nos dias atuais e algumas tendências culturais do século XXI; No
terceiro capítulo, Bauman, trata sobre a cultura, a construção da nação ao
mundo globalizado; os três últimos capítulos 4, 5 e 6 abordam respectivamente,
a cultura no mundo das diásporas; a cultura numa Europa em processo de unificação
e a cultura entre o estado e o mercado.
As
duas obras dialogam entre si por abordarem questões sobre modernidade,
pós-modernidade, cultura e consumo de massa. Embora, os dois autores argumentem
em linhas muito semelhantes, a perspectiva e objetos de estudo de cada um deles
é diferente. Esta resenha tem por finalidade identificar pontos em comum defendidos
por esses dois autores e traçar uma intersecção entre eles. Escrevi essa resenha para a disciplina Teoria Social Contemporânea, do Mestrado em Ciências Humanas da UFABC, do qual sou mestranda. Devido a relevância do conteúdo considerei importante compartilhá-lo.
Harvey
(2008) inicia sua tese mencionando uma mudança abissal nas práticas culturais
desde 1972 e que a mesma está vinculada à emergência de novas maneiras dominantes
pelas quais experimentamos o tempo e o espaço. Apresenta a relação entre formas
culturais pós-modernas, emergência de modos mais flexíveis de acumulação de
capital e o novo ciclo de compressão do tempo-espaço na organização do
capitalismo.
Bauman
(2013) por sua vez, inicia seu livro mostrando a situação atual da cultura.
Cita a equipe liderada por John Goldthorpe, sociólogo de Oxford, onde eles
concluem que na hierarquia da cultura atual, não se pode mais estabelecer a
distinção entre a elite cultural e aqueles que estão abaixo dela a partir dos
antigos signos: frequência regular a óperas e concertos; entusiasmo pela
“grande arte”; hábito de torcer o nariz para tudo que é comum, como uma canção
popular ou um programa de TV voltado para o “grande público”. Para reforçar
essa teoria, Bauman (2013) faz referência a Richard A. Petersen e sua metáfora
da “onivoridade”, onde o confronto não é tanto de um gosto refinado contra um
gosto vulgar, mas do onívoro contra o unívoro, da disposição para consumir tudo
contra a seletividade excessiva.
Harvey
(2008) aborda o livro Soft City, escrito por Jonathan Raban, que descreve a
vida de Londres nos anos 70. Para Harvey, este livro desperta seu interesse
enquanto marco histórico, por ter sido escrito em um momento de mudança na vida
urbana, além de ter pressagiado termos como “gentrificaçao” [1] e “yuppie”[2]. Além disso, o mesmo foi
escrito no auge em que o “pós-modernismo” emergiu como crisálida do antimoderno
e estética cultural. Raban se opôs à tese de que a cidade estava sendo vitimada
por um sistema racionalizado e automatizado de produção, consumo de massa e bens
materiais, pela ideia da produção de signos e imagens. Ele também rejeitou a
ideia de uma cidade estratificada por ocupação e classe. Ao invés disso,
vislumbrava um individualismo disseminado em marcas da distinção social
conferido por meio da posse e da aparência. A cidade, na visão dele, parecia
mais um teatro (cidade labirinto, colmeia, redes diversas de interação social),
com uma série de palcos em que os indivíduos podiam operar sua própria magia
enquanto representavam vários papeis. Apesar de todo esse pensamento, Raban não
acreditava que tudo corria bem. Se havia algo de libertador na possibilidade de
representar vários papeis ao mesmo tempo, também havia algo estressante e desestabilizador
em ação e ameaça de dissolução da vida social. A cidade como teatro poderia
transformar a vida social em tragicomédia nos casos onde os códigos não fossem
decifrados corretamente e essa tarefa tornou-se ainda mais difícil devido à
forma como o empreendimento foi reduzido a produzir fantasias e disfarces, por
trás de todas as misturas de códigos e moda, cujo “imperialismo do gosto”
espreitava para recriar novas hierarquias de valores e significações que as
modas mutantes solapavam. Neste contexto, sinais, estilos, sistemas de
comunicação rápida, altamente convencionalizada são o sangue vital da cidade
grande. Quando esses sistemas entram em colapso perdemos nosso domínio da
gramática da vida urbana e a violência assume o controle.
Sobre
“Modernidade e Modernismo”, Harvey (2008) procura conceituar estes temas
citando vários autores, desde Baudelaire, Lionel Trilliing, Berman, Frisby até
o historiador Carl Schorske e o poeta W. B. Yeats. Ele examina com atenção a
conjunção entre efêmero e fugidio e o eterno imutável, uma vez que a história
do modernismo como movimento estético oscila de um lado a outro dessa
formulação dual. Para ele, se a vida moderna está de fato permeada por este sentido
(fugidio, efêmero, fragmentário e contingente), há profundas consequências.
Para começar, a modernidade não pode respeitar seu próprio passado, uma vez que
transitoriedade das coisas dificulta a preservação de todo sentido de
continuidade histórica. Neste caso, questiona Harvey, como interpretar isso, como
descobrir os elementos “eternos imutáveis” em meio a essas disrupções radicais?
Eis o problema. Onde procurar algum sentido de coerência, para não falar da
necessidade de dizer alguma coisa consistente sobre o “eterno e imutável” que
supunha espreitar esse turbilhão de mudança social no espaço e no tempo? Para
responder estas perguntas Harvey faz uma análise da resposta filosófica e
prática que foi gerada pelos pensadores Iluministas e como esta resposta
dominou boa parte do debate acerca do sentido de modernidade.
Para
saber se o projeto do Iluminismo estava fadado ou não desde o início a nos
levar a Auschwitz e Hiroshima e se lhe restava ou não poder para informar e
inspirar o pensamento e ação contemporâneos, são questões crucias, apontadas
por Harvey (2008). Para reforçar esse questionamento Harvey cita autores
críticos ao projeto do Iluminismo, como por exemplo, Edmund Burke, Malthus, Max
Weber, Bernstein e Nietzsche.
Bauman
(2013), por sua vez, utiliza-se dos conceitos de Pierre Bourdieu. De acordo com
este, em algumas décadas atrás, toda contribuição artística costumava ser
endereçada a uma classe social especifica, cuja principal contribuição era a
definição de classe, segregação e manifestação do pertencimento a uma classe.
Bauman (2013), explica que havia o gosto das elites, relacionado à “alta
cultura”, o gosto médio ou “filisteu”, típico da classe média e o gosto
“vulgar” da classe baixa. Misturá-los era tão difícil quanto juntar fogo e água.
Em La distinction, de Bourdieu, a
cultura se manifestava acima de tudo como um dispositivo útil, destinado a
assinalar diferenças de classe e salvaguardá-las. Como uma tecnologia inventada
para a criação e proteção das divisões de classe e das hierarquias sociais. Segundo
o conceito original, a “cultura” seria um agente da mudança do status quo, e
não de sua preservação; ou, mais precisamente, um instrumento de navegação para
orientar a evolução social rumo a uma condição humana Universal. O propósito
inicial do conceito de “cultura” não era servir como registro de descrições,
inventários e codificações da situação corrente, mas apontar um objetivo e uma
direção para futuros esforços. O nome cultura foi atribuído a uma missão
proselitista, planejada e empreendida sobre a forma de tentativas de educar as
massas e refinar seus costumes, e assim melhorar a sociedade e “aproximar” o
povo, ou seja, os que estão na “base da sociedade” daqueles que estão no topo. A
“cultura” era associada a um feixe de luz capaz de “ultrapassar os telhados” das
resistências rurais e urbanas para atingir os recessos sobrinhos do preconceito
e da superstição que como tantos vampiros não sobreviveriam quando expostos à
luz.
Bauman
(2013) faz então um deslocamento histórico para explicar o conceito de cultura
e sua relação com a modernidade e suas possíveis consequências na
pós-modernidade. O termo “cultura” entrou no vocabulário moderno como uma
declaração de intenções, uma missão a ser empreendida. O conceito de cultura presume
a existência de uma divisão entre os educadores, relativamente poucos, chamados
a cultivar as almas, e os muitos que deveriam ser objeto de cultivo. A cultura
compreendia um acordo planejado e esperado entre os detentores do conhecimento
e os ignorantes. Acordo endossado e efetivado sobre a direção exclusiva
recém-formada da “classe instruída” que buscava moldar uma nova e aperfeiçoada
ordem a partir das cinzas do antigo regime. A intenção era a educação, o
esclarecimento, a elevação e o enobrecimento do povo recém-entronizado no papel
de cidadão do recém-criado Estado-Nação. O “projeto Iluminista” conferiu à
cultura o status de ferramenta básica para construção de uma nação, de um Estado
e de um Estado-Nação, ao mesmo tempo confiando essa ferramenta às mãos da
classe instruída.
Além
do conceito de cultura, Bauman (2013) aborda também a colonização. Segundo ele,
a perspectiva da colonização de amplos domínios revelou-se um estilo poderoso à
ideia Iluminista de cultura e deu à missão proselitista uma nova dimensão,
potencialmente global. Numa imagem especular da visão de “esclarecimento do povo”
forjou-se o conceito de “missão do homem branco” de “salvar o selvagem de seu
estado de barbárie”. Logo esses conceitos ganhariam um comentário teórico sob a
forma da teoria cultural evolucionista, que promovia o mundo “desenvolvido” ao
status de perfeição inquestionável, a ser imitada e ambicionada, mais cedo ou
mais tarde, pelo restante do planeta. Na busca desse objetivo, o resto do mundo
deveria ser ativamente ajudado e, em caso de resistência, coagido. A teoria
cultural evolucionista atribuiu à sociedade “desenvolvida” a função de
converter os demais habitantes do planeta. Todas as iniciativas e realizações
culturais foram reduzidas ao papel destinado a ser desempenhado pela elite
metropolitana colonial perante seu próprio populacho metropolitano.
De
acordo com Harvey (2008), a imagem da “destruição criativa” é muito importante
para a compreensão da modernidade porque derivou dos dilemas práticos
enfrentados pela implementação do projeto modernista. Afinal, como poderia ser
criado um novo mundo sem se destruir boa parte do que viera antes? Harvey se
utiliza da literatura, arquitetura urbana e economia para explicar isso. Cita
como arquétipo literário desse dilema, O Fausto, de Goethe. Para ilustrar a
destruição criativa na arquitetura moderna, cita Haussmann, o “artista demolidor”.
Aborda o economista Schumpeter que empregou essa mesma imagem para compreender
os processos do desenvolvimento capitalista.
Para
Harvey (2008) a própria inventividade de todas aquelas mentes ávidas, capazes
de perturbar o equilíbrio, produzia as qualidades efêmeras e transitórias do
próprio juízo estético, mais acelerando do que reduzindo o ímpeto das modas
estéticas: impressionismo, pós-impressionismo, cubismo, fauvismo, dadaísmo,
surrealismo, expressionismo, etc. Além disso, a mercadificação e a
comercialização de produtos culturais durante o século XIX forçaram os
produtores culturais a seguir uma forma de competição de mercado que viria a
reforçar processos de “destruição criativa” no interior do próprio campo
estético e isso se refletiu também na esfera político-econômica. A luta para
reproduzir uma obra de arte capaz de encontrar um lugar impar no mercado, tinha
de ser um esforço individual forjado em circunstâncias competitivas. A arte
modernista sempre foi o que Benjamim denomina “arte áurica”. Por outro lado, a
obra de arte na era da reprodução mecânica (livros, fotografia, filme e um
grande público de massa) mudaram radicalmente as condições de existência dos
artistas e seu papel social e político.
Bauman
(2013) faz um recorte para falar sobre a beleza, citando Oscar Wilde e Sigmund
Freud. Para Oscar Wilde, os escolhidos não são eleitos em virtude de sua
compreensão do que é belo, mas porque a declaração “isso é belo” é impositiva,
proferida por eles e confirmada por suas ações. Freud acreditava que o
conhecimento estético em vão busca a essência, a natureza e as fontes da beleza
e tende a ocultar sua ignorância com uma série de pronunciamentos solenes,
presunçosos e vazios. A beleza não tem uma utilidade óbvia. Nem existe para ela
uma necessidade de cultura. Contudo, sem ela, a “civilização” não poderia
existir.
Para
destrinchar mais a questão da beleza, Bauman (2013) recorre novamente a
Bourdieu que sugere que há os benefícios da beleza e a necessidade dela. Os
benefícios não são “desinteressados”, como afirmou Kant e a necessidade não é
obrigatoriamente cultural, é “social”. A cultura era vista por seus
elaboradores como uma força “socialmente conservadora”. Bauman (2013), explica
que quando publicada, La Distinction,
de Pierre Bourdieu, virou de cabeça para baixo o conceito original de “cultura”
nascido no Iluminismo e desde então transmitido de geração em geração.
De
acordo com Harvey (2008) a complexa geografia histórica do modernismo torna
duplamente difícil interpretar o que era modernismo. As tensões entre
internacionalismo e nacionalismo, globalismo e etnocentrismo, universalismo e
privilégio de classe nunca estiveram longe da superfície. Em seus melhores
momentos, o modernismo tentou enfrentar as tensões, porém no seus piores, ou
varreu para baixo do tapete ou as explorou. O modernismo era uma “arte das
cidades”. A rápida urbanização produziu a “atitude blasé[3]”, denominada por Frisby,
porque somente afastando os complexos estímulos advindos da velocidade da vida
moderna poderíamos tolerar seus extremos. A única saída é cultivar um falso
individualismo através da busca de sinais de posição, de moda, ou marcas de
excentricidade individual. A moda, por exemplo, combina “atração da
diferenciação e da mudança com a da similaridade e conformidade”; quanto mais
nervosa uma época, tanto mais rapidamente mudam as suas modas.
Bauman
(2013) também discorre sobre a questão da individualidade e da moda. De acordo
com ele, em tempos líquidos-modernos, a cultura é modelada para se ajustar a
liberdade individual de escolha e à responsabilidade por essa escolha. Sua
função é garantir que a escolha seja e continue a ser uma necessidade e um
dever, enquanto a responsabilidade pela escolha e suas consequências permaneçam
sobre os ombros do indivíduo. Hoje, a cultura consiste em oferta, e não em
proibições. Como Bourdieu observou, a cultura agora está engajada em fixar
tentações e estabelecer estilos, em atrair e seduzir, não em produzir uma
regulação normativa. O papel da cultura não é mais a conservação do estado
atual mas, a poderosa demanda por mudança constante. Seria possível dizer que
ela funciona como um mercado de consumo orientado para a rotatividade.
Sobre
moda, Bauman (2013) argumenta que não é um fato físico e sim um fenômeno social.
Uma vez que os esforços coordenados e resolutos do mercado de consumo fizeram
com que a cultura fosse subjugada pela lógica da moda, torna-se necessário - para
ser uma pessoa e ser visto como tal - demonstrar a capacidade de ser outra. O
modelo pessoal da busca de identidade torna-se o “camaleão”. A cultura
plenamente abrangente de nossos dias exige que se adquira a aptidão para mudar
de identidade com tanta frequência, rapidez e eficiência quanto se muda de
roupa. Com um preço modesto, ou nem tanto, o mercado de consumo vai ajudá-lo na
aquisição dessas habilidades, em obediência à recomendação da cultura. Como
Blaise Pascal observou, séculos atrás, as pessoas procuram ocupações urgentes e
opressivas que as impeçam de pensar em si mesmas, e por isso estabelecem como
alvo um objeto atraente que possa encantá-las e seduzi-las. As pessoas querem
fugir à necessidade de pensar sobre sua “condição infeliz”. É por isso que
preferimos a caçada à captura. Os pensamentos de Pascal são concretizados na
moda comercializada.
Harvey
(2008) chama a atenção sobre a questão do mito da máquina que dominou a arte
modernista no período entre guerras. Neste período havia algo de desesperado na
busca de uma mitologia que pudesse de algum modo aprumar a sociedade, naquela
época conturbada. Foi nesse contexto que vários movimentos contraculturais e
antimodernistas dos anos 60 apareceram.
Harvey
(2008) reconhece que “pós-modernismo" tornou-se um conceito que já não
pode ser ignorado. Para compreender mais esse conceito, ele procura responder aos
seguintes questionamentos: 1) O pós-modernismo representa uma ruptura radical
com o modernismo, ou é apenas uma revolta deste contra certa forma de
"alto modernismo", representada na arquitetura? 2) Será um estilo ou
devemos vê-lo estritamente como um conceito periodizador? 3) Terá um potencial
revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de metanarrativa
(da razão iluminista) e da sua estreita atenção a "outros mundos" e
"outras vozes" que há muito estavam silenciados (mulheres, gays,
negros)? 4) Não passa da comercialização e domesticação do modernismo e de uma
redução das aspirações já prejudicadas deste a um ecletismo de mercado
"vale tudo", marcado pelo laissez-faire? 5) Solapa a política
neoconservadora ou se integra a ela? 6) Associamos a sua ascensão a alguma
reestruturação radical do capital, à emergência de alguma sociedade
"pós-industrial", vendo-o até como a "arte de uma era
inflacionária" ou como a "lógica cultural do capitalismo
avançado"?
Para
obter as respostas, Harvey (2008) analisa as seguintes peças desse enorme
quebra-cabeça: Arquitetura; cidade; literatura; filosofia; cinema; pintura;
comunicação; televisão; capitalismo; consumo e cotidiano. Começa verificando se
o pós-modernismo teve seu início com a arquitetura. Cita Charles Jencks, para o
qual, o final “simbólico” do modernismo e a passagem para o pós-moderno,
ocorreu às 15h32m, de 15 de julho de 1972, quando o Pruitt-Igoe, de St Louis,
foi dinamitado e as ideias de Le Corbusier e de outros apóstolos do "alto
modernismo" cederam espaço às diversas possibilidades, dentre as quais
“Learning from Las Vegas”, de
Venturi, Scott Brown e Izenour, publicado em 1972. Onde o principal enfoque é aprender
com o estudo de paisagens populares e comerciais e construir para as pessoas, e
não para o “Homem”. Depois da arquitetura, Harvey verifica se o planejamento da
cidade influenciou nesse processo. O artigo de Douglas Lee, "Requiem for large-scale planning models",
previu a queda dos esforços dos anos 60 para desenvolver modelos de planejamento
de larga escala. Hoje é norma procurar estratégias "pluralistas" e
"orgânicas" para a abordagem do desenvolvimento urbano. A
"cidade-colagem" é o tema, e a "revitalização urbana"
substituiu a "renovação" como a palavra-chave dos planejadores.
Para
ajudar a compreender o pós-modernismo, Harvey (2008) utiliza o esquema de
Hassan que estabelece oposições estilísticas entre modernismo e pós-modernismo.
Além disso, dialoga com Foucault e Lyotard, uma vez que ambos atacam qualquer
noção de metalinguagem, metanarrativa e verdades eternas. Eles insistem na
pluralidade de formações de "poder-discurso" (Foucault) ou de
"jogos de linguagem" (Lyotard).
Harvey
(2008) explica que o "desconstrucionismo" iniciado pela leitura de
Martin Heidegger, por Derrida no final dos anos 60, surge como um poderoso
estímulo para o pensamento pós-moderno. A vida cultural é vista como uma série
de textos em intersecção com outros textos, produzindo mais textos. Esse
entrelaçamento intertextual tem vida própria. O que quer que escrevamos
transmite sentidos que não estavam ou não podiam estar na nossa intenção. É vão tentar dominar um texto. Os textos e
sentidos estão fora do nosso controle; a linguagem opera através de nós.
A
“colagem/montagem” é outro tema tratado por Harvey (2008). Segundo ele, esta é
a modalidade primária do discurso pós-moderno. A heterogeneidade estimula
receptores do texto/imagem a produzir uma significação que não poderia ser
unívoca nem estável. O produtor cultural cria as matérias-primas (fragmentos e
elementos), deixando aberta aos consumidores a recombinação desses elementos. O
efeito é desconstruir o poder do autor de impor significados ou de oferecer uma
narrativa contínua. A quebra da continuidade ou linearidade do discurso leva a
uma dupla leitura. A continuidade só é dada no "vestígio" do
fragmento em sua passagem entre a produção e o consumo.
Harvey
(2008) alerta para a “esquizofrenia pós-moderna”. A fragmentação e
instabilidade da linguagem e dos discursos leva a esquizofrenia, em vez da
paranoia (esquema Hassan). Cita Jameson, que usa a descrição da esquizofrenia de
Lacan como desordem linguística, ruptura na cadeia significativa de sentido.
Quando essa cadeia se rompe, "temos esquizofrenia na forma de um agregado
de significantes distintos e não relacionados entre si". Isso se enquadra
na preocupação pós-moderna com o significante, e não com o significado. Com a
participação, a performance e o happening, em vez de um objeto de arte acabado
e autoritário. Com as aparências superficiais e não com as raízes (esquema
Hassan). O colapso da cadeia significativa é reduzir a experiência a "uma
série de presentes puros e não relacionados no tempo". Deleuze e Guattari
apresentam a hipótese de um relacionamento entre esquizofrenia e capitalismo:
“A nossa sociedade produz esquizofrênicos da mesma maneira como produz o xampu
Prell ou os carros Ford, com a única diferença de que os esquizofrênicos não
são vendáveis". O modernismo dedicava-se à busca de futuros melhores,
mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranoia. O pós-modernismo
concentrar-se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e
por todas as instabilidades que nos impedem de conceber estratégias para
produzir algum futuro radicalmente diferente.
Outro
ponto discutido por Harvey (2008) é “a série de presentes puros e não
relacionados no tempo". A imagem, a
aparência, o espetáculo podem ser experimentados pela sua apreciação como
presentes puros. O caráter imediato dos eventos, o sensacionalismo do
espetáculo (político, científico, militar, de diversão) se tornam a matéria de
que a consciência é forjada. O pós-modernismo abandona todo sentido de
continuidade e memória histórica. Desenvolve uma incrível capacidade de pilhar
a história e absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente. A
arquitetura e a pintura pós-moderna, pegam partes e pedaços do passado de
maneira bem eclética e os combina à vontade.
Sobre
a “evaporação da continuidade e memória histórica”, Harvey (2008) verifica que
o papel do historiador é tornar-se um arqueólogo do passado (Foucault),
escavando seus vestígios e colocando-os no museu do conhecimento moderno
(Borges). Há pouco esforço para sustentar a continuidade de valores, de crenças
ou mesmo de descrenças. A redução da obra de arte a um texto que acentua a
descontinuidade, suscita problemas para o julgamento estético e crítico.
Recusando e desconstruindo, o pós-modernismo pode julgar o espetáculo apenas em
termos de quão espetacular ele é. Isso enfatiza a falta de profundidade da
produção cultural contemporânea, a fixação nas aparências, nas superfícies e
nos impactos imediatos que, com o tempo, não têm poder de sustentação. O
colapso dos horizontes temporais e a preocupação com a instantaneidade surgiram
em decorrência da ênfase contemporânea no campo da produção cultural em
eventos, espetáculos, happenings e imagens de mídia. Os produtores culturais
aprenderam a explorar e usar novas tecnologias, e as possibilidades multimídia
para reenfatizar e celebrar as qualidades transitórias da vida moderna. A
aproximação entre cultura popular e produção cultural, embora dependa muito de
novas tecnologias de comunicação, parece carecer de todo impulso vanguardista
ou revolucionário, levando muitos a acusar o pós-modernismo de uma simples e
direta rendição à comercialização e ao mercado.
A
questão da pós-modernidade e cultura é algo que Harvey (2008) julga ser uma
questão difícil. O gosto cultural nos
anos 60 e a sua substituição pela pop arte, pela cultura pop, pela moda efêmera
e pelo gosto da massa são vistas como um sinal do hedonismo inconsciente do
consumismo capitalista. Os fermentos culturais de base urbana que começaram no
início dos anos 60 e existem até hoje e estão na raiz da virada pós-moderna
(cinema, tv, vídeo, moda, etc) são diariamente mixados e reciclados na tela
gigante que é a cidade contemporânea. Apontar a potência da TV na moldagem da cultura
como modo total de vida é cair num determinismo tecnológico simplista do tipo
"a televisão gerou o pós-modernismo". A televisão é ela mesma um
produto do capitalismo avançado e, como tal, tem de ser vista no contexto da
promoção de uma cultura do consumismo.
Sobre
pós-modernidade, Bauman (2013) explica que com o passar do tempo o produto
almejado de cultura se formou. A posição na nova ordem das classes que se lhe
educavam foi assegurada. Em vez de esforços, cruzadas ou missões do passado,
audaciosos e aventureiros da cultura agora se assemelhavam a um dispositivo
homeostático, uma espécie de giroscópio protegendo o Estado. Em suma, a “cultura”
foi transformada de estimulante em tranquilizante; de arsenal de uma revolução
moderna em repositório para conservação de produtos. Em meio a essas funções
ela foi capturada, imobilizada, registrada e analisada. Essa perda de posição
foi resultado de uma série de processos que constituíram a transformação da
modernidade na sua fase “sólida“ para “líquida”. A expressão “modernidade
líquida” denomina o formato atual da condição moderna, descrita por outros
autores como “pós-modernidade”, “modernidade tardia” “segunda modernidade” ou “hipermodernidade”.
Para
Bauman (2013) o que torna a modernidade “líquida”, e assim justifique a escolha
do nome, é sua “modernização” compulsiva e obsessiva, capaz de impulsionar e
intensificar a si mesma, em consequência do que, como ocorre com os líquidos,
nenhuma das formas consecutivas da vida social é capaz de manter seu aspecto
por muito tempo. Dissolver tudo que é “sólido” tem sido a característica
moderna desde o princípio, mas hoje, ao contrário do passado, as formas
dissolvidas não devem ser substituídas por outras formas sólidas consideradas “aperfeiçoadas”,
no sentido de serem até mais sólidas e “permanentes” que as anteriores, e
portanto até mais resistentes à liquefação. No lugar das formas derretidas e
inconstantes, surgem outras também inconstantes.
Em relação ao “pós-modernismo e a lógica cultural do
capitalismo”, Harvey (2008) considera a produção de necessidades e desejos e a
mobilização do desejo e da fantasia para a política da distração como parte do
impulso para manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de conservar a
lucratividade da produção capitalista. O que temos visto nos últimos anos é a
virtual tomada da arte pelos grandes interesses corporativos. As corporações se
tornaram os principais patrocinadores da arte. O desenvolvimento de uma cultura
de museu e uma florescente "indústria da herança" que se iniciou no
começo dos anos 70 dão outra virada populista à comercialização da história e
de formas culturais. Ambos conspiram para criar uma tela oca que intervém entre
a nossa vida presente e a nossa história. A promoção da publicidade como
"a arte oficial do capitalismo" traz para a arte estratégias
publicitárias e introduz a arte nessas mesmas estratégias.
Bauman
(2013) mostra que nos tornamos uma sociedade de consumidores, em que a cultura
se manifesta como arsenal de artigos destinados ao consumo, todos competindo
pela atenção passageira e distraída, dos potenciais clientes, todos tentando
prender essa atenção por um período maior que a duração de uma piscadela. Como
já observamos, ela afasta todos os rígidos padrões e exigências, aceita todos os
gostos com imparcialidade e sem uma preferência unívoca, com flexibilidade de
predileções, com impermanência em inconsequência de escolha. Essa é a marca da
estratégia recomendada como mais sensata e mais correta. Hoje, o sinal de
pertencimento de uma elite cultural é o máximo de tolerância e o mínimo de
seletividade. O esnobismo cultural consiste agora na negação do esnobismo (saciar
o apetite de todos). Essa é uma qualidade louvável e admirável do suplemento cultural
de uma sociedade em que redes substituem estrutura. Em que o jogo interminável
de conectar-se e desconectar-se dessas redes substitui a determinação, a
lealdade e o pertencimento.
Para
Bauman (2013), a cultura hoje se assemelha a uma gigantesca loja de
departamentos e as pessoas seus consumidores. A cultura da modernidade líquida
não tem um populacho a ser esclarecido e dignificado. Tem clientes a seduzir. A
sedução, em contraste com o esclarecimento e a dignificação, não é uma tarefa
única, que um dia se completa, mas uma atividade com o fim em aberto. A função
da cultura não é mais atender necessidades existentes, mas criar outras
permanentemente irrealizadas. Sua principal preocupação é neutralizar a
satisfação total, completa e definitiva.
Observa-se
que tanto Harvey quanto Bauman, alertam para o fato de que atualmente, a
cultura se transformou em uma extraordinária ferramenta, para formar ávidos consumidores
desse “imperialismo do gosto”. Na lógica cultural do capitalismo, a “esquizofrenia”
produzida pelo marketing e pela publicidade cria falsas identidades. Essas
falsas identidades são alimentadas por uma moda ilusória, desejos de um estilo “camaleão”
e uma constante ânsia para estar sempre “online” e atualizado com a “última
versão”. Isso se reflete na mudança de foco da posse para o constante descarte.
A condição líquido-moderna impõe que tudo é presente puro, sem nenhuma relação
com o “tempo e espaço”. Nessa “evaporação da continuidade histórica” perdemos
nossa memória. Para preencher esta lacuna e fazer um resgate do passado, somos
obrigados, a nos valer dos produtos da “indústria da herança”. Quanto ao futuro,
nossa capacidade se concentra apenas nas circunstâncias induzidas pela
fragmentação e em todas as instabilidades que nos impedem de conceber ideias e
avaliações “sólidas”.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
HARVEY,
David. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
São Paulo: Edições Loyola, 2008.
BAUMAN,
Zygmunt. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2013.
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