Mais
do que atual: Nise é urgente para a sociedade brasileira.
Ao
contrário do estereotipo da “bela, recatada e do LAR” lançado recentemente pela
revista Veja, Nise da Silveira, foi um belo exemplo de mulher guerreira.
Nordestina, nascida em Alagoas, formada em Psiquiatria e discípula de Carl
Gustav Jung se rebelou contra a psiquiatria da época que aplicava violentos
choques para "ajustar" pessoas e propôs um tratamento humanizado, que
usava a ARTE para reabilitar os pacientes. Na época da Ditadura foi presa por
conta de uma denúncia de uma enfermeira que a acusou de ter livros “Marxistas”.
Nessa época nefasta ler o que bem entendesse era censurado e proibido. Na prisão,
Nise conheceu Graciliano Ramos e foi citada em seu famoso livro, Memórias do
Cárcere.
Sou
uma grande admiradora da vida, obra e trabalho de Nise da Silveira. Assisti à
peça de teatro, “Nise da Silveira - A Senhora das Imagens” e tenho um livro,
onde ela explica o “Inconsciente Coletivo” e os “Arquétipos do Inconsciente” defendidos
por Jung. Ouso até dizer que sou uma e discípula de alma e coração do Jung e da
Nise. Transcrevo abaixo, integra de uma matéria da revista Exame sobre Nise da
Silveira. Adorei essa matéria e quero deixar seu conteúdo registrado aqui meu
blog Estrambólica Arte. Blog esse que considero como um espaço para
externalizar meus sentimentos e pensamentos que julgo serem de conhecimento e
domínio público.
Em
terras de sanidade obrigatória e desenfreada, quem permite a loucura é rei. E
rainha. Pois imagine que, sãos e fora de manicômios, estejamos saindo no tapa
por nossas verdades. Dividindo o mundo entre o Bem e o Mal. Contabilizando
relatos selvagens. Justificando nossa falta de utopia com um racionalismo
paralisante. Deixando de sonhar e de se arrepender. Nem isso, nem aquilo. Nossa
existência se encontra bem ali, no meio do isso e do aquilo. No incerto e no
incalculável. Entre o olhado e o invisível.
Nise
da Silveira, psiquiatra alagoana (1905-1999), enxergou a riqueza de seres
humanos que estavam “no meio do caminho”.
No meio do caminho entre o existir e a dignidade. No meio do caminho entre a
loucura e a exclusão total. Entre o aceitável e o abominável.
Essa
mulher se rebelou contra a psiquiatria que aplicava violentos choques para
"ajustar" pessoas e propôs um tratamento humanizado, que usava a arte
para reabilitar os pacientes. Esquizofrênicos marginalizados e esquecidos
puderam ser autores de obras hoje expostas no Museu de Imagens do Inconsciente,
no Rio de Janeiro (RJ). A arte marcou o renascimento daquelas pessoas para a
sociedade.
Os
ensinamentos de Nise nos falam de uma atualidade que se repete a cada vez que a
loucura é estigmatizada e polarizada: é ou não é louco(a). Cobramos de nós
mesmos, o tempo todo: sejamos funcionais. Como se não pudéssemos falhar ou
viver nossas escolhas fora da curva que definiram para nós.
Nise,
essa senhorinha miúda, agigantou a humanidade ao cuidar de brasileiros
rejeitados pelo sistema e isolados do convívio. A história dela já foi tema de
documentários e agora volta às telas com o filme inédito Nise – O Coração da Loucura, que estreia nesta quinta-feira
(21). Dirigido
por Roberto Berliner e estrelado por Gloria Pires, o longa, baseado no livro
Nise - Arqueóloga dos Mares, do jornalista Bernardo Horta, traz um recorte
acessível e emocionante da atuação da psiquiatra e sua defesa da arte como principal ferramenta de reintegração de
pacientes chamados "loucos".
Depois
de assistir ao filme, fica evidente, por meio de uma ficção que comove e
mobiliza, o fato de que Nise terá sempre nosso respeito e admiração, pois
tratou a loucura com carinho e fez dela um motor de vida. Descobrir a história
de Nise é encontrar um pouco de nós mesmos nos momentos em que parecemos não
“caber” em nossa própria existência. Como essa mulher fez a diferença no mundo,
listamos algumas razões pelas quais ela merece ser convocada à nossa memória:
ELA FOI UMA MULHER
PIONEIRA: Em 1926, ao
se formar na Faculdade de Medicina da Bahia, Nise era a única mulher em uma
turma de 157 alunos. Ainda na graduação ela apresentou o estudo Ensaio sobre a
criminalidade da mulher no Brasil.
ELA DEU VOZ À LOUCURA: “Na época em que ainda vivíamos os
manicômios e o silenciamento da loucura, Nise da Silveira soube transformar o
Hospital Engenho de Dentro em uma experiência de reconhecimento do engenho
interior que é a loucura”, explica à revista Cult Christian Ingo Lenz Dunker,
psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Nise era
uma defensora da loucura necessária para se viver. “Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo
mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação,
pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com
pessoas muito ajuizadas.”
ELA FOI PRESA POLÍTICA: Nise ficou presa de 1934 a 1936,
durante o Estado Novo, acusada de envolvimento com o comunismo. Ela foi
denunciada por uma colega de trabalho, que era enfermeira. No presídio Frei
Caneca, ela dividiu a cela com Olga Benário, a militante comunista alemã que na
época era casada com Luís Carlos Prestes, lembra a revista Cult. Na prisão,
Nise também conheceu o escritor alagoano Graciliano Ramos, que a cita em seu
livro Memórias do Cárcere:
"(...) Lamentei ver
a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus
queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza
moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a
escusar-se a tomar espaço.”
ELA IMPLEMENTOU A
TERAPIA OCUPACIONAL NO MANICÔMIO:
Em 1944, Nise passou a trabalhar no Hospital Pedro II, antigo Centro
Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro. Ela se recusou a seguir o tratamento
da época, que incluía choque elétrico, cardiazólico e insulínico, camisa de
força e isolamento. Ao dizer “não”, a psiquiatra foi transferida, como
“punição”, para o Setor de Terapia Ocupacional do Pedro II. A reportagem da
revista Cult lembra que esse era um espaço desprestigiado na época. Porém, essa
transferência foi fundamental para a revolução que Nise provocaria na
psiquiatria: foi nesse setor do hospital que ela implementou, junto com o
psiquiatra Fábio Sodré, a Terapia Ocupacional no tratamento psiquiátrico.
ELA USOU A ARTE PARA
TRATAR PROBLEMAS GRAVES DE SAÚDE MENTAL: Nise percebeu que as artes plásticas eram o canal de
comunicação com os pacientes esquizofrênicos graves, que até então não se
comunicavam verbalmente. As obras produzidas por eles davam “voz” aos conflitos
internos que viviam. Ela expôs as artes feitas pelos pacientes. Além do efeito
terapêutico, as artes plásticas possibilitaram que os pacientes (ou clientes,
como Nise gostava de chamá-los) se tornassem verdadeiros artistas. A produção
do ateliê do Setor de Terapia Ocupacional já tinha despertado a atenção de
pesquisadores de saúde mental e médicos, mas críticos de arte também viram
naqueles trabalhos obras artísticas dignas de exposição. Foram organizadas duas
exposições internacionais e, em 1952, foi inaugurado o Museu de Imagens do
Inconsciente, no Rio de Janeiro. Em entrevista à revista Cult, Luiz Carlos
Mello, diretor do Museu das Imagens do Inconsciente e autor da fotobiografia
Nise da Silveira – Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde, informa que o acervo
pessoal de Nise da Silveira é tombado como Memória do Mundo da Unesco. “Com a
criação do Museu, também como um centro de estudos e pesquisa, seu acervo
atingiu mais de 360 mil obras e se tornou a maior e a mais diferenciada coleção
desse tipo de arte no mundo. Suas principais coleções foram tombadas pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.”
ELA INTRODUZIU GATOS E
CACHORROS NA ROTINA DOS PSICÓTICOS:
Nise encorajou os pacientes psicóticos a conviverem com gatos e cachorros. O
resultado foi uma admirável promoção de afetividade com os bichinhos.
ELA REVELOU AS EMOÇÕES
DOS ESQUIZOFRÊNICOS: Elizabeth
Maria Freire de Araújo Lima, professora do Curso de Terapia Ocupacional da USP
e autora do livro Arte, Clínica e Loucura: Território em Mutação, explica à
revista Cult que Nise constatou que o mundo interno do esquizofrênico,
considerado inatingível até então, poderia ser acessado, revelando as emoções
desses pacientes por meio das artes plásticas. “Nise afirmava que o hospital
colaborava com a doença e acreditava que caberia à terapêutica ocupacional
parte importante na mudança desse ambiente.” Nise era uma devoradora de livros
e tinha um interesse especial pela obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung.
Ela escreveu uma carta para ele, pedindo ajuda para interpretar as mandalas que
os pacientes desenhavam. A correspondência é relatada na fotobiografia Nise da
Silveira – Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde:
“A configuração de mandala harmoniosa, dentro
de um molde rigoroso, denotará intensa mobilização de forças auto-curativas
para compensar a desordem interna. Então pedi para que fotografassem algumas
mandalas e as enviei com uma carta para C. G. Jung, explicando o que se
passava. Foi um dos atos mais ousados da minha vida.”
Bernardo
Horta, autor da biografia Nise — Arqueóloga dos Mares, diz à Cult que Nise
“constata o que Jung afirmava: se para o neurótico – o que seria todos nós,
segundo Freud – o tratamento é por meio da palavra, ou seja, a psicanálise,
para o esquizofrênico, segundo Jung, a palavra não dá conta. Para esse
paciente, o tratamento deveria ser pela imagem”. Em 1957, Nise é convidada por
Jung para passar um ano estudando com ele no Instituto Junguiano, na Suíça,
além de expor o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente no II Congresso
Internacional de Psiquiatria. Na volta ao Brasil, em 1958, ela criou o Grupo de
Estudos C. G. Jung no Rio de Janeiro, que coordenou até morrer, em 1999.
ELA QUESTIONOU OS
MANICÔMIOS: Para
Nise, a experiência em manicômios mostrou que havia uma confusão entre hospital
psiquiátrico com cárcere, com os pacientes tratados como presos. Avessa a essa
abordagem desde o começo, e defensora de um olhar humanista, em 1956, Nise
fundou a Casa das Palmeiras, a primeira instituição a desenvolver um projeto de
desinstitucionalização dos manicômios no Brasil. A Casa é lugar para o convívio
afetivo e estímulo à criatividade dos psiquiátricos. A clínica funciona em
regime aberto, sem fins lucrativos, à base de doações.
ELA AJUDOU A ESCREVER A
HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA:
Nise apontou falhas na psiquiatria, contestou práticas e demonstrou soluções,
dando novos contornos e sentidos aos tratamentos e às relações entre
psiquiatras e pacientes. Em seus 94 anos de vida, a alagoana publicou dez
livros e escreveu uma série de artigos científicos.
ELA REPRESENTA UMA
RESISTÊNCIA ATEMPORAL:
O psicanalista Christian Dunker, no Blog da Boitempo, reforça a atemporalidade
dos feitos de Nise: “Não me parece um acaso que, em meio ao momento de maior
dissenção social que já vivemos, desde os anos de chumbo da ditadura militar,
estejamos presenciando o maior retrocesso desde então registrado em matéria de
saúde mental. A nomeação de Valencius Wursch Duarte Filho como secretário de
saúde mental do Ministério da Saúde, em uma operação indecente de barganha
política, é o retorno de tudo o que Nise demorou uma vida para desfazer.
Passeatas, manifestações e mesmo a própria ocupação, que persiste há mais de
dois meses, de uma das salas do Ministério, parecem não ter voz nem luz contra
a volta das piores trevas psiquiátricas.” “Duarte Filho foi diretor técnico do
hospital psiquiátrico Casa de Saúde Dr. Eiras, fechado em 2012 depois de
constatadas graves violações aos direitos humanos pela Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados”, escrevem os psicanalistas Antonio Lancetti e
Maria Rita Kehl, e o psicólogo Aldo Zaiden, em um artigo na Folha de S. Paulo. Segundo
a Sociedade Brasileira de Psicanálise, entre os profissionais de saúde, a
indicação de Duarte Filho para o cargo é vista como um “retrocesso e uma ameaça
real aos avanços conseguidos nos últimos anos com a Rede Nacional de Saúde
Mental, que promoveu a substituição dos hospitais psiquiátricos pelos Centros
de Atenção Psicossociais, organizados para oferecer atendimento intensivo,
articulados a emergências psiquiátricas, residências terapêuticas e outras
formas efetivas de reabilitação, beneficiando milhares de pessoas antes
sujeitas a maus-tratos de toda ordem”.
Mais
do que atual: Nise é urgente para a sociedade brasileira.
Referência do texto:
http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/a-mulher-que-revolucionou-o-tratamento-da-loucura-no-brasil
Crédito
da imagem:
http://www.diariodopoder.com.br/noticia.php?i=45939025490
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